NOSSOS CONTATOS : (11) 2985 3994
O QUE É O ESCLARECIMENTO SEGUNDO KANT
Em dezembro de 1784, Immanuel Kant¹ (1724/1804) escreveu uma resposta à pergunta feita em abril de 1783, portanto um ano e oito meses mais tarde, pelo jornal germânico Berlinische Monatschrift: O que é o esclarecimento? Esse seria um dos pontos centrais da teoria kantiana que discutido no seu livro, Crítica da Razão Pura, sobre como se dá o conhecimento, fato necessário para que haja esclarecimento, quais as suas possibilidades (dogmatismo e ceticismo), quais os limites (até onde se pode conhecer) e qual o âmbito (campo de atuação) de aplicação desse conhecimento.
Precisa ser lembrado que, nessa época, a nova ciência da natureza que vinha aprimorando os avanços anteriores da matemática e da lógica, e que agora, tinha como ponto mais forte a física, a qual caminhava a passos largos no progresso do conhecimento. Todavia, a questão deste filósofo prussiano era: Por que a filosofia não acompanha a física? Pode existir alguma relação entre física e metafisica? Por que a metafísica não pode oferecer soluções unanimes com consenso? A metafísica é possível como ciência? Todas essas perguntas resultaram em processos do conhecimento trazidos por Kant em uma nova leitura, onde ele introduz a teoria dos juízos (idealismo transcendental) para sedimentar o conhecimento e como ele se dá no sujeito.
Mas, o objetivo dessa pesquisa é falar sobre o Esclarecimento (aufklärung) na visão kantiana, e qual o seu propósito e no que ele contribui para a formação do homem em sociedade hoje. No dicionário comum, esclarecer significa iluminar; fazer ficar claro; disseminar luminosidade o que corrobora e enfatiza o período do Iluminismo europeu do século XVIII, que toma muito das ideias kantianas, com o objetivo de levar o público a sair das amarras da tradição tanto religiosa quanto política como também econômica.
Voltando ao foco principal deste trabalho, para este filosofo em pauta, Esclarecimento “é a saída do homem de sua menoridade, do qual ele mesmo é culpado” ² , pois não fazendo uso de sua capacidade de reflexão e raciocínio, pode deixar-se levar pela opinião de outrem, sendo guiado às cegas. Não que haja falta de entendimento, mas uma passividade, um comodismo vicioso, talvez despercebido, que o leva a uma preguiça de pensar e a uma covardia de agir por si mesmo, não ousando saber (sapere aude, em latim), tornando-se uma marionete dos influenciadores de mídia e pertencendo ao rebanho, à massa despersonalizada.
Para Kant, a educação é crucial no processo de esclarecimento do homem desde a sua tenra infância até a fase adulta. Conhecer é ter liberdade para agir com segurança e com caráter integro, servindo-se de si mesmo com autonomia de pensamento, livrando-se de algemas que podem ser, muitas vezes, destrutivas no processo de formação do sujeito.
“No virar do século XIX para o XX, sucederam-se várias mortes: a morte do sujeito histórico, social, moral e espiritual, a morte das utopias, das ciências… E temos o anúncio de uma outra morte: a da infância e, consequentemente, da educação. Em duas obras sucessivas O desaparecimento da Infância e O fim da Educação, o jornalista e educador americano Neil Postman sinaliza esta morte na sociedade de massa, onde a tecnologia roubou o lugar da cultura e o espetáculo tirou a reflexão de cena, pelo impacto dos meios de comunicação de massa.” ³
Qual seria o papel da educação senão o de trazer o esclarecimento, formar pessoas idôneas e autônomas? Livra-las da massificação do pensamento, tanto usada por aqueles influenciadores que gostam de poder e dominação pela da ignorância, não melhorando o nível de escolaridade do país. O ser humano depende da sua educação para alcançar patamares cada vez mais altos de moralidade e conhecimento. O esclarecimento tem que ser conquistado às duras penas, com vigor e vontade. Como foi dito por Aristóteles, o homem tem necessidade de conhecer, faz parte de sua essência o ousar saber, a busca da verdade.
“Seja qual for o processo histórico constitutivo dessa ideia, toda essa discussão nos lança a uma problemática, que se radica no próprio cerne da educação: o que distingue educação de manipulação? Qual a natureza real da criança (em seus aspectos biológicos, cognitivos, sociais, morais e espirituais, se pudermos falar de uma natureza infantil)? Ela pode ter alguma defesa contra forças externas que a moldam? E qual a nossa responsabilidade e possibilidade de ‘fazer o outro ser humano’?” 4
Entretanto, para alguns, é cômodo não saber, ou ser menor ou ter alguém que tome as decisões, pois aí há a isenção da responsabilidade e a vida continua “calma e feliz”. Não há necessidade de pensar por que, para alguns, pensar é um exercício exaustivo e não há por que perder tempo com isso. Há a possibilidade de se contratar alguém para pensar, como era feito na Grécia Antiga pelos sofistas, mas nem sempre esse “pensar” é sadio e, muitas vezes, pode embotar o raciocínio do contratante, encerrando-o em uma gaiola de ouro, mantendo-o cativo por anos a fio, alimentando-o de falsas teorias ou fake news, perfeitamente maquiadas, que previnem o cativo de sair de sua prisão para ousar conhecer ou pensar por si mesmo; mas chega o dia em que isso cansa e forçosamente a gaiola se abre para a liberdade de ação autônoma.
“Em sua apresentação na Brazil Conference, evento organizado por estudantes brasileiros em Boston (EUA), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), falou, entre outros temas, dos desafios da verdade em tempos de desinformação. “Precisamos restabelecer o poder da verdade possível e plural dentro de uma sociedade aberta. Precisamos enfrentar esse mundo da desinformação, da mentira deliberada e das teorias conspiratórias”, disse. 5
O perigo hoje é que a mentira tomou o lugar do esclarecimento, da liberdade de pensar e de agir. Ela é mais cômoda para aceitar pela grande massa, principalmente se é uma pílula dourada. “A mentira não apenas ganhou, com as redes sociais, novos meios de difusão, como vem obtendo, em muitos ambientes e grupos sociais, uma espécie de carta de validade.” 6 E com esse procedimento, o homem se afasta cada vez mais de sua maioridade, o oposto da menoridade, aceitando a mentira como uma versão da história, o que não é, pois mentira é só mentira e nada mais. Se a mentira é aceita sem maiores reflexões pode ser resultado de um cerceamento mental por parte de outros ou porque ela se encaixa tão bem no que o indivíduo pensa que ela não hesita em acolhê-la. No texto no qual se funda este artigo e cuja referência se encontra na descrição da atividade, é dito:
“É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura.” (grifo meu)
Mas nem tudo está perdido, pois sempre tem alguns que pensam acima da massa, capazes de pensamentos próprios, que não se deixam colocar sob uma canga, e que podem disseminar, ao redor de si, a disposição e vontade de conhecer a verdade, de avaliar o conteúdo exposto, de produzir uma análise racional e lógica dos acontecimentos sociais tanto em larga escala quanto em pequena. Esses indivíduos podem terem sido, um dia, também subjugados por influenciadores nocivos, mas que, de tanto sofrerem consequências de atos impensados levados por outros, conseguiram se libertar da gaiola e alçar voos mais altos, atingindo a maioridade e liberdade de ação e pensamento, características imprescindíveis para o esclarecimento.
Se se toma a liberdade como um atributo necessário para a autonomia do ser, ela, no entanto, pode ser restringida, colocando-se limitações tais como os dogmas religiosos, os preconceitos, que não permitem uma discussão racional e filosófica sobre eles, pois fazem parte de regras de grupos sociais que devem ser aceitas sem questionamentos. Mais um exemplo de dominação e poder. Num trocadilho, o esclarecimento (aufklärung) é que proporcionará o verdadeiro poder e dará ao indivíduo a condição de dominar a sua ignorância. A expressão ‘não é permitido raciocinar’ já não tem mais validade e nem lógica para eles. Todavia, há os que são obrigados a aderirem a normas e regras ou conceitos por fazerem parte de grupos que exigem deles o caminho equivocado, dogmático. Mas, no particular, podem se comportarem de maneira diferentes, usando a sabedoria para espalhar o esclarecimento entre os seus. No artigo em pauta é dito: “.... enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, gozam de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos"
Calvin e Haroldo 7 - Calvin ousou!
Quais são os resultados da falta de esclarecimento seja por opção própria ou por imposição, sabendo que o homem pode adiar seu esclarecimento, mas não pode renunciara ele eternamente. O aufklärung acontecerá inevitavelmente, pois é necessário que o homem se esclareça para ampliar o senso moral e o caráter integro. Quanto mais ele o adia, piores serão as consequências para ele próprio e para os que o rodeiam.
No livro Sobrevidas do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, Prêmio Nobel de Literatura em 2021, tendo como cenário a África no início do século 20 é dito:
“....quando colonizadores avançam violentamente pela África, dizimando povos e impondo regras e costumes. Com uma escrita precisa, recheada de informações culturais locais, Gurnah revela a tentativa dos habitantes locais de manter uma ainda que frágil rotina, diante da ameaça constante de que novos combates arrasem a vida de todos mais uma vez. “É uma história multigeracional, com muitos personagens vivendo sob as mesmas duras circunstâncias do colonialismo, guerra, perda e privação. No entanto, cada um é único, com diferentes perspectivas, ações e reações a essas circunstâncias.” 8
Este é o resultado da falta de esclarecimento, de se livrar da menoridade, passando para maioridade, a violência desenfreada em busca de poder e domínio, sustentado pela ignorância. Vemos no texto, os sofrimentos aplicados ao povo africano, mas também se percebe que cada um reage de uma forma particular em diferentes perspectivas, talvez uns se conformando e outros reagindo em atitude mais reflexiva e não passiva, procurando uma porta de saída para capacidade de promoção de si mesmo. Vemos isso acontecer em líderes tal como Nelson Mandela, Bishop Desmond Tutu entre inúmeros outros que buscavam acima de tudo o esclarecimento e a harmonia entre povos. Esses líderes dedicaram-se a extinguir os obstáculos que preveniam o esclarecimento de seus irmãos africanos e porque não do mundo todo. Fizeram o uso da liberdade de pensamento, utilizando a própria razão para iluminar questões políticas, filosóficas, econômicas e morais.
Concluindo, mais cedo ou mais tarde e naturalmente, o homem se desprenderá da menoridade, das amarras da ignorância, por si mesmo, galgando patamares inimagináveis que lhe permitirão ter uma vida mais plena, mais esclarecida e feliz. É necessário que, aqueles que insistem intencionalmente em mantê-lo na gaiola da ignorância, sejam também esclarecidos, pois são eles os mais infelizes porque se consideram sábios, mas definitivamente não o são.
__________________________________________________________________________
1 WICKPÉDIA - Immanuel Kant foi um filósofo prussiano, amplamente considerado como o principal filósofo da era moderna que operou, na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental, e a tradição empírica inglesa.
2 KANT, I, “Que é Esclarecimento?” ou “Resposta à Pergunta O Que São as Luzes”, tradução de Thomas Conti, disponível em< http://thomasvconti.com.br/2013/immanuel-kant-que-e-esclarecimento/ > acesso em 21/04/2022
3 INCONTRI, D., Conceito de Criança – de Platão a Pestalozzi: Um resgate do amor pedagógico, data do artigo 22 de dezembro de 2011, disponível em < http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/i_autores/INCONTRI_Dora_tit_Conceito_de_crianca.htm > Acesso em 21/04/2022
4 idem
5 Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, 18 de abril de 2022 | 03h00, disponível em < https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,mentira-nao-e-outra-versao-da-historia,70004041070> acesso em 21/04/2022.
6 idem
7 CALVIN E HAROLDO https://www.google.com/search?q=calvin+e+haroldo+tirinhas&rlz=1C1ISCS_pt-PTBR968BR968&sxsrf=APqWBstGZYWtzuAgB9Ek0mGMrX9hugAsg:1650552953176&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiovNPztKX3AhUPqJUCHX7zBDUQ_AUoAXoECAIQAw&biw=1410&bih=706&dpr=1.25#imgrc=wiKkmdh7vxwA3M
8 Nobel de Literatura de 2021, Abdulrazak Gurnah escreve sobre os efeitos do colonialismo, Entrevista com Abdulrazak Gurnah por Ubiratan Brasil, O Estado de S.Paulo, 31 de março de 2022 | 05h00, disponível em https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,nobel-de-literatura-de-2021-abdulrazak-gurnah-escreve-sobre-os-efeitos-do-colonialismo,70004024588, acesso em 21/04/2022
MIRIAM ZILLO
Expositora do NEF
29/05/2022
REFERENCIAS: sites consultados
KANT, I, “Que é Esclarecimento?” ou “Resposta à Pergunta O Que São as Luzes”, tradução de Thomas Conti, disponível em< http://thomasvconti.com.br/2013/immanuel-kant-que-e-esclarecimento/ > acesso em 21/04/2022
INCONTRI, D., Conceito de Criança – de Platão a Pestalozzi: Um resgate do amor pedagógico, data do artigo 22 de dezembro de 2011, disponível em < http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/i_autores/INCONTRI_Dora_tit_Conceito_de_crianca.htm > Acesso em 21/04/202
Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, 18 de abril de 2022 | 03h00, disponível em < https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,mentira-nao-e-outra-versao-da-historia,70004041070> acesso em 21/04/2022.
CALVIN E HAROLDO
Disponível em https://www.google.com/search?q=calvin+e+haroldo+tirinhas&rlz=1C1ISCS_pt-PTBR968BR968&sxsrf=APqWBstGZYWtzuAgB9Ek0mGMrX9hugAsg:1650552953176&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwiovNPztKX3AhUPqJUCHX7zBDUQ_AUoAXoECAIQAw&biw=1410&bih=706&dpr=1.25#imgrc=wiKkmdh7vxwA3M – acesso em 21/04/2022
Nobel de Literatura de 2021, Abdulrazak Gurnah escreve sobre os efeitos do colonialismo, Entrevista com Abdulrazak Gurnah por Ubiratan Brasil, O Estado de S.Paulo, 31 de março de 2022 | 05h00, disponível em https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,nobel-de-literatura-de-2021-abdulrazak-gurnah-escreve-sobre-os-efeitos-do-colonialismo,70004024588, acesso em 21/04/2022